NO TREM DE WASUNGEN A EISENACH, 16 de dezembro de 1990, 17:10.

 

Escrevo aqui (literalmente no verso de um artigo russo muito chato sobre meu assunto tecnológico, os superímãs de terras raras) esta memória da emoção de estar em Wasungen, de reencontrar (e até derramar um pouco) o sangue Landgraf.

 

E quase não vim. Minha mulher Jaqueline não quis vir, e a compreendo. Esta é uma “viagem solitária”. Três dias atrás resolvi que viria. Já tinha três endereços de Landgrafs em Wasungen, mas ainda não tinha conseguido contato. Minha enrolação natural, unida à dificuldade da língua e de pedir favores, adiava o contato. Na Sexta feira dia 14, depois do “júbilo” de encontrar uma pista charmosíssima para todo meu trabalho sobre o diagrama ternário neodímio-ferro-boro, e ter de esperar até segunda feira para confirmá-la frontalmente (ou talvez, em caso negativo, contar com a boa vontade dos interessados no assunto e ter uma explicação plausível, mas sem todas as provas necessárias) lá fui eu pedir auxílio aos colegas do Max Planck Institut, onde eu estava: foram todos simpáticos, como sempre.

 

O horário do trem era ingrato: ou sair às 6h da manhã e chegar as 15h em Wasungen ou sair às 10 para chegar 17 e tanto. Era melhor acordar cedo. Mas e o contato? Dentre os três endereços, escolhi um Georg. Mesmo nome do antepassado, era um bom augúrio. Telefone sempre ocupado, e um colega já tinha avisado da dificuldade de atravessar os escombros do socialismo real. Sem contato prévio, então. Estilo brasileiro, para o desprezo dos alemães.

 

Tentei dormir cedo, sem muito sucesso. Fiquei ajudando a Jaqui a embrulhar presentes de natal-despedida. Quando acordei, às 4:30, minha mala estava arrumada. Linda Jaqui. Com bilhete desejando o encontro de pedaços de meu eu.

 

Noite fria, mas uma claridade intensa vinha de trás da floresta de Büsnau: será do acampamento militar americano? As 5:17, precisamente como só quase sempre, lá estava o ônibus 84 a me levar prô S-Bahn. E com umas sete pessoas dentro. O que fazem esses malucos, tâo cedo, num Sábado? E neve por todo lado.

 

S-Bahn até a Hauptbahnhof, a estação principal de trens de Stuttgart, e 15 minutos para comprar a passagem. Fila. Nervosismos. “Wasungen”? Nunca ouvi falar!”. Tá bom, dá um bilhete para Frankfurt, eu sei desde ontem a seqüência de horários e sei que tenho 45min de espera lá. Deve dar para me comunicar melhor. No caminho amanheceu, com aquele tom azulado-neon que a neve reflete. Até dormi um pouquinho, depois de ler este artigo horrendo que serve de veículo para estas linhas.

 

O receio de que a fila em Frankfurt fosse maior ainda não se confirmou. Tudo fácil, tranqüilo. DM 130 pela ida e volta. E lá fui eu. Nach Wasungen. Mas não é assim tão fácil. Mudar de trem em Bebra, já na “ antigamente DDR”. Uma hora de espera, passeio pela cidadezinha. Cheia de carros ocidentais, muito pintadinha, agem rápido esses boches. Mas feia prá burro. Outra baldeação em EisenachLembráva-me dela, cinza, na viagem prá Berlin em 1987. Sua fábrica de automóveis caindo aos pedaços. De novo uma hora de espera. Nova voltinha. Desta vez mais divertida, cidade mais bonitinha (por ser antiga). Restos de socialismo aqui e ali: cartaz com mapa de pontos turísticos ainda tem um barbudo Marx a nos olhar, vigilante. Casas elegantes, tipo casarões da Av. Paulista, caindo aos pedaços. A rua Karl Marx era apropriada. Cheia de fábricas, horrível. Cheiro de óleo por todo lado. E neve suja.

 

E daí prá frente o coração aperta: começo a anotar nomes de cidade do caminho – não tenho mapa, merda – e comparo com nomes que estão nas 7 arvores genealógicas que você, meu pai, mandou-me. E passa um frio na espinha ao perceber que só tenho certeza de que o Gotthard é de Wasungen. E se o nosso Georg for de Meiningen? Vou até lá ou não? Depende do que encontrar em Wasungen. Seja lá o que Deus quiser.

 

Mais uma estação. E um riozinho começa a nos acompanhar no trem: “É este o Werra?” Claro. O coração aperta mais um pouco. Um sol tímido cria sombras nas pegadas na neve das plataformas das estações. Este trem é literalmente um “cata-jeca”. E eu vou prestando atenção nas estações. Mais indústrias do que eu imaginava. E vem uma estação sem nome, uma cidadezinha encarapitada na montanha: “Wasungen?”. Lá vou eu. Uma estaçãozinha menor que a de Brazópolis, sem cobertura na plataforma. Ninguém desce comigo. Mas lá está o Werra. Quanto ouvi este nome, desde menino.

 

Foto com por do sol no Werra

 

O primeiro objetivo é encontrar um pouso, depois os endereços. Não tem cartaz com mapa da cidade, hum. Pergunto a três transeuntes onde dormir, “ah, tem o ThüringerHof”. Estou na Unterhauptstrasse, será que tem a RuaPrincipalDeCima e a DeBaixo? Não parece. Encontro o ThüringerHof, bom, o edifício de 3 andares, mais de cem anos, não está pior que os vizinhos. Tudo envelhecido, impressionante. Mas do meu gosto. Ruínas modernas.

 

Abro a porta e encontro uma antesala de uns 20 metros quadrados, uma geladeira em desuso, 2 portas de banheiro e uma escada. Subo e encontro quartos. Não tive coragem de gritar “ô de casa”. Saí correndo. Devo achar coisa melhor.

 

No quarteirão seguinte arrisco olhar os nomes no umbral das portas. Um Landgraf já no primeiro. Vais ser fácil. Continuo andando ao leo. Vejo um cartaz “Waldfrieden Pension”, 200m. “ Alegria da floresta”, pensei. Acho que não é bem isso a tradução, mas vamos lá. Subo uma ladeira íngreme com molecada descendo de trenó. Com alguma dificuldade encontro o local: como fica liso o chão quando a neve vira gelo. Subindo morro, então... Um alemão barrigudo, cabelos negros, barba por fazer, 50 anos, já me espera no alto da escada do jardim...

 

Interrompo a narrativa. Meu trem já chega à primeira parada de volta prá casa: Eisenach. Esta conexão foi rápida: só dez minutos. Encontro o trem cheio, mas acho lugar numa cabine, dá para sentar e escrever. E esquentar os pés, já que 10 minutos na plataforma é suficiente para endurece-los. Mas, frio mesmo, só nos pés.

 

Ao alemão barrigudo. Começa minha aventura com a língua. Pelo que entendi, estava cheio. E ele me pergunta o que eu fazia ali. Expliquei. Aí entramos e ele foi me mostrando o quarto, banheiro só no corredor, mas quem aqui quer luxo? Quanto? DM25! Ridículo. Será que entendi direito? Números, em alemão, é de doer. Legal, fico. Bom, e como me chamo? Landgraf. Ah, temos muitos. Tem alguém que goste de conversar? Tem o Chiochi. Que nome, parece japonês. Ele me explica como chegar lá, eu peço para repetir o nome: Georg. Ah, aquele de ontem! Das ligações telefônicas não completadas! Tá esquentando!

 

Vamos lá. É engraçada essa minha mania de tratar-me no plural. É a esquizofrenia. Somos muitos. “Vai pela esquerda, se escorregar você se segura na cerca.” Hum, tá bom. De volta à Unterhauptstrasse passo pela Rathaus, a câmara dos vereadores, e noto os resultados das eleições de 2 de dezembro. Deu CDU direto, 47%, SPD só 27%. Volver à direita! Como nos filmes do Rintintin. É a ressaca do socialismo.

 

E chego à casa do Georg. Tive que perguntar prum transeunte, pois as casas não tem número. Prá que, em Wasungen! 4500 habitantes. Atende uma baixinha de cabelos negros. “Herr Georg LandgrafIch bin auch ein Landgrafaber aus Brasilien”. A baixinha arregalou os olhos e me mandou entrar. Eu tinha já pensado a cena. Um alemão impaciente, atendendo-me na porta e perguntando E daí? E eu imaginava como ser simpático, em alemão, perguntar se ele tinha tempo, desculpe por não Ter ligado antes, o Sr. Tem tempo mais tarde? Amanhã talvez? Em vez disso, em dois minutos estou sentado na sala, com duas senhoras, uma mocinha e uma criança. O Georg não está, foi à Meningen ver a mãe no hospital, volta em uma hora. Mas nós somos parentes? E eu sei lá? Vim aqui por acaso, só sei que somos de Wasungen. Em minutos apareceu uma árvore genealógica que alguém fez. E lá está um georg, em 1800! Mas os nomes dos filhos não batem. Ah que pena, foi na trave, esta! E lá vem livrinho de histórias de Wasungen, fotos antigas, revistas do Carnaval de Wasungen, o Georg (atual) foi Rei Momo em 1968. Ôpa, calma com o paralelo. Todo carnaval tem um tema e um príncipe, é da tradição daqui. Príncipe tem que ser novo e bonitinho. E lá estava Georg I, todo empoado em 1968! E a moreninha do lado dele sou eu, Ingrid. Frau Landgraf.

 

Foto do georg

 

E muita conversa rolou. Pode ficar com uma cópia da árvore genealógica. Em algum momento chegou Georg, simpaticíssimo, repetimos parte do que já tinha rolado e mais histórias apareceram. Ele fazendo o possível para descobrir algum parentesco, mas tá difícil. E olha que a árvore dele vai até 1690! A outra senhora, parecida com minha prima Vandalice, irmã do Georg, sai da sala e volta com cópias xerox de 4 das fotos da cidade antiga. Começo a olhar em volta e tentar entender o que será que se passou aqui nos últimos 45 anos...Afinal, conversa de família vai até um certo ponto e pára.

 

A situação está preta, todo mundo desempregado __ também pudera, até restaurante era do governo... agora acabou isso __ mas ainda bem, agora tem liberdade.Antes era grave. A história dos Stasi, a polícia secreta, afetava até uma cidade pequena como esta. Os temas de carnaval eram censurados, os motivos de viagem investigados, etc. A família tinha uma fábrica de sabão até 1960, por falta de matéria prima virou uma lavanderia e depois fechou. A fábrica de sabão era de 1830! O tal Georg Adam Landgraf, tetravô deste Georg, a fundou. O pai do atual Georg tinha até patente de máquina de fazer sabão. De 1930. Enfim, a situação dos negócios independentes era crítica. Georg virou-se no comércio, mas sempre “funcionário”. Teve restaurante e lanchonete. Locupletava-se, talvez, pelas fotos das festas familiares que ele promovia no restaurante. E agora quer Ter um hotel. A irmã deve abrir um restaurante, dia 01 de janeiro próximo.

 

Bom, mas e nós? O pastor, é verdade, talvez. Mas amanhã é advento, ele vai estar ocupado. Pode deixar que falo com ele, deixe aqui o que você sabe de sua árvore, o que encontrarmos eu mando. E fique com estas revistas repetidas do carnaval, com estas fotos de Wasungen antiga. Tudo isso em alemão. Toda hora ele falava em Pfahrer, eu pensava, quem será o parente. Só depois entendi que era o pastor da igreja.

 

E por hoje chega, é melhor dormir. É cedo, mas o que fazer em Wasungen? Então vamos. E o Georg vai comigo, tentamos falar com outra parenta, tipo aquelas tias altas e empertigadas lá de Pirassununga. Mas sem Stambaum, que é o nome da árvore genealógica. Elas nos mandou sentar mas ela mesma ficou de pé. Dali não saiu coelho. Saímos da parenta e eu perguntei onde poderia comer. Aliás estranhei que, simpatia a parte, só me ofereceram café. Fiquei umas 2 ou 3 horas lá!

 

Ele me levou ao bar-restaurante da Câmara e fomos logo tomando umas para comemorar. E deliramos planejando o encontro dos Landgraf em Wasungen, lotando o Hotel dele. Ele contou queos saídos de Wasungen tem um encontro anual em Bonn, ano passado juntou 2000 pessoas.

 

E comi uma carne de porco com batata e repolho. Gostozinha, pela minha fome. Ele autorizou-me a chamá-lo de tu, o que, para um alemão, pode exigir anos...

 

E fui dormir. Quis começar a escrever, mas descobri que tinha deixado a caneta em algum lugar do caminho. Cortei o dedo e só percebi depois de ter manchado várias coisas, dentre elas a árvore genealógica deles. Sangue do meu sangue. Que pena não sermos parentes... Mas eles disseram que tem muitos Landgraf em Wasungen, e nem todos são parentes... Tenho chance, então. Ou será que são de Meiningen? Que chato. Durmo às 9:30. Quie delícia de acolchoado de penas!

 

Sonhei com o que? Com meu velho amigo Baró, aquele que muitos consideram louquinho, mas de quem eu gosto. Assunto? Já me esqueci.

 

Acordei com uma certa ressaca, tomei umas aspirinas e voltei a dormir. Levantei às 8 horas, que é quando começa clarear por aqui. Abri a janela, apesar do frio, prá sentir o cheiro de Wasungen. Terra molhada. Frio que entra pelo nariz. As encostas dos morros salpicadas de casinhas, tão pequenas, mas que descobri serem bangalôs de veraneio. Curioso.

 

Contei de minhas aventuras ao dono da pensão, que também me sugeriu falar com o pastor. Vamos passear. Ontem descobri também que há um castelinho no alto do morro, mas tá muito frio para subir até lá. Fica para mais tarde, se esquentar. Vou à procura dos muros da cidade antiga, e da igreja. Encontro o caminho da igreja: as ruas tem nomes simples e diretos. Kircheweg, por exemplo. Caminho da igreja.

 

No meio da encosta, mas no alto da cidade, uma igrejinha aponta sua torre única para o céu. Feita de pedra, como o muro da cidade que lhe passa imediatamente atrás. Portas enferrujadas, tento sentir os espíritos dos antigos a percorrerem-me o sangue, mas a sombra da dúvida fica ali perturbando: E se eles não forem daqui? Afinal, na árvore de ontem tinha pistas para o Gotthard, mas não prá nós... Desci da igreja por um beco escadaria que serpenteava entre as casas, todas de pedra ou de madeira e barro, aquelas travas de madeira aparentes, tão típicas da idade média alemã.

 

Foto do muro de pedra

 

Alguns frontões renascentistas mostram que a riqueza alemã dos séculos XVI e início do XVII foi bem espalhada: não somente Heidelberg ou Dresden, mas até cidadezinhas pelo meio. Ou talvez Wasungen não fosse tão cidadezinha naquela época. Mas nada do barroco que veio depois, com seu classicismo mais sério nas fachadas. E soube ontem que a Guerra dos Trinta Anos cobrou seu preço de Wasungen. Só não sei quanto.

 

Foto da casa 

 

Bom, de volta a Unterhauptstrasse, descubro o convento das moças, atual biblioteca, e começo a ouvir sinos. E ver pessoas dirigirem-se apressadas a algum lugar. Quem sabe é a chance de ver a igreja aberta, falar com o pastor. Sigo as pessoas. De volta ao Kircheweg, vejo as pessoas entrando numa casinha com cara de casa paroquial, em vez de irem para a igreja. Mas os sinos insistentes devem significar missa. Entro ou não? É ou não invasão? Não. No mínimo, vale um agradecimento solene por estar aqui, perto ds ancestrais. E por estar entre pessoas que tem sido tão simpáticas. E nunca vi um culto luterano, vamos lá. Soube, depois, que a igreja velha é muito fria, não há dinheiro para aquece-la, eles tem missa na casa paroquial mesmo.

 

Foto da casa paroquial

 

Entro, sou obviamente observado pelas 20 pessoas que lá estão, sento. Logo uma gordinha me traz um livro e uma almofada. Dankedanke. Entra o pastor, careca, gordinho, cabelos pretos, e senta na frente, de costa para nós. Ou, como todos nós, de frente para a cruz. Senta a mocinha ao piano e descubro que o que tenho nas mãos não é uma bíblia, mas um livro de cantos. É claro que não encontro o que eles estão cantando, mas o piano e as vozes são uma mistura da sonoridade do piano de músicas que lembram... Bach não, é muito mais simples, lembram os spirituals dos criolos americanos. É engraçado descobrir a fonte dos spirituals, mas falta o balanço e a afinação daqueles que a gente ouve em filmes. No alto de cada música, sempre cifrada, as datas de 1600 e tantos.

 

Consigo achar onde estão eles e arremedo um canto baixinho, feliz por estar lendo e cantando alguma coisa. O evangelho vem depois, com João perguntando a Cristo se ele é aquele que esperamos. Infelizmente não entendi o alemão e não me lembro da resposta, mas deve ser aquele duplo sentido que Jesus adorava aplicar nos que duvidam.

 

Chega o momento esperado: o Pastor vai ao meio e puxa 3 páginas escritas com letra miudinha e despeja o verbo. Não entendi nada. Ele falava de olhos fechados, ou olhando para cima, sem encarar-nos. Mas tinha paixão, tinha emoção no que falava. Gostei.

 

Acabado o Gottesdienst, que é o nome da missa, ele saiu e ficou lá fora despedindo-se de todos. Esperei os 20 saírem e lá fui: ele devia estar curioso também. Disse a ele quem eu era, e que tinha vindo agradecer a Deus a possibilidade de estar ali. Ele chamou uns que ainda estavam por ali e contou a eles. Ficou feliz, ele. Aí eu perguntei se tinha chance de ver os livros. Ahá, lá fomos nós!

 

Em vez de me perguntar datas, foi na letra L de um livrão. , eles já tem a árvore genealógica construída, não, não é bem isso, são famílias ali descritas. Achou um Georg, com um filho Christian Georg, que foi à Pirassununga! Mas em 1883... E o Christian era nascido em 1835. E descobrir isso não foi tão fácil. Será que as datas estão todas erradas, na nossa história? Afinal, consta que o Christian era nascido em 1830 e que foi ao Brasil em 1861. Daí que ... Mais buscas e os irmãos do Christian não conferem. Mas buscas e sai algo pelo lado do Elias, possível pai do Gotardo. E o tempo passa. E o Pastor, herr Kindler, com sinais de impaciência. E eu tropeçando nas datas.

 

Dou sinais de que acho que não é por ali, mas estou pronto a aceitar que ele feche o livrão. Tremo em pensar que vou morrer na praia, mas não ofereço a possibilidade da dúvida, (será que eles são de Meiningen?) E ele aceita. Pega outro livrão e pergunta a data.

 

Vamos a 1830 e lá aparece Christian, filho de Georg. Será outro? E dali voltamos ao livrão das famílias. Ah, meus deus, será? Será que estamos chegando lá? Mais buscas no livrão. Letra miúda, tudo escrito em abreviaturas, ele busca com uma lupa... E vira páginas. Ah meu deus! Acha Georg. E desfila os filhos: nomes e datas batendo!

 

...

E ali escrito, direitinho: partiram para o Brasil em 11 de abril de 1861. A família toda menos dois. Como controlar a emoção, ou como falar em alemão! Só sabia dizer, aliás engolir, oh Got, pois sei que não se deve chama-lo em vão. Mas aqui não é em vão. São quantos anos, meu pai, quantos anos de busca paciente pelas gavetas da família? Pelas sacristias. E minha mãe, cheirando poeira nos Arquivos do Estado. E, bom, nem tudo é perfeito, tantas horas de discurso à mesa... Mas aqui está, confirmado, escritinho, em Wasungen. Sim, o ar que respiro é aquele que meus antepassados respiravam, aquela igreja, estes muros, estas casas...

 

Bom, mas vamos em frente. E o Georg, de onde vem? Chegamos ao seu pai, Johann Michael, e a lista de seus filhos, e que Johann Michael era filho de Johan Christian, nascido em 1735. Eu não aguentava mais. Era demais, eu tinha que parar. Eu queria mais, mas não aguentava. E estávamos ali há uma hora. Eu transbordava.

 

Perguntei ao pastor se já não tinha tomado muito de seu tempo... Eu sou assim, felicidade muita eu não aguento, tenho que parar. O homem disse algo que não entendi mas levantou-se. Levantei-me. Tava bom.

 

Saí dali com um pressentimento, foram todos os sinos que só minha cabeça ouvia. Aquela lista de filhos do Johann Michael. Seriam os mesmos nomes da lista do atual Georg? Seríamos parentes, afinal? Mas a sua árvore estava na minha sacola, lá na Pensão. Ou subir à pensão ou ir à casa do Georg, levantar uma esperança que depois a nós todos frustaria. Tenho mania de fazer isso.

 

À Pensão. Só não corria por medo de levar um tombo. Já imaginou se somos parentes? Aí a reunião de Landgrafs em Wasungen tem que acontecer. No hotel do Georg, que tal? Mas, será?

 

Cheguei à pensão esbaforido. Ofereceram-me almoço. Uma simpatia, o casal. À eles eu despejei minha euforia hipotética. Cadê minha mala? Abro, busco as folhas datilografadas com a árvore do Georg e lá estão todos eles! Como se fossem espíritos a me sorrir! Sem medo de espíritos.

 

E nessa ganhamos uma geração a mais. Na árvore deles, que vira nossa, chegamos ao Heinrich Landgraf, nascido em 1690, em KaltenNordHeim, a 20Km de Wasungen, que mudou-se para cá para fabricar óleo!

 

Almocei um frango com uma massa de batatas, uma delícia. Esqueci o nome. E saí correndo. Expliquei que tinha que avisar o Georg de que somos parentes. Eles entenderam. E lá, com os primos, brindamos, e mais fotos, mais presentes e a promessa de reencontro no verão de 92. Que tal? Dá tempo para organizar a família? E deixo Wasungen com a chegada da noite, às 5 da tarde.

 

Com isso, chego com meu trem em Frankfurt, a penúltima baldeação. E sai o trem com 15 min de atraso. Já viu , vou perder a conexão em Manheim. Só quero ver chegar em Stuttgart depois do último metrô...

 

E agora, como ficamos? Taí descrita nossa ancestralidade pobre. Moleiros e fabricantes de sabão. E diaristas. Bóias-frias. Não foi a toa que partiram para a grande aventura de cruzar os mares. Foram bem sucedidos? Acho que sim, a medir por nós. Afinal, estamos aqui, buscando raízes. Eu, com esse trabalho de poeta moderno, vulgo cientista, brincando de entender os profundos porquês da Natureza, cheia de truques a esconder seus segredos. Prá que mesmo? Talvez prá dar a oportunidade de escapar um fim-de-semana e vir chafurdar o rio Werra.

 

Sobram questões, é claro. Por que saíram de Wasungen? Afora as deduções óbvias, se quisermos fatos, só se encontrássemos o irmão do Christiano que ficou, e a ele pergutássemos. Seus descendentes, é claro. E quanto a um brasão, acho que seu palpite do galo é perfeito. Está no brasão de Wasungen, é o galo da região de Henneberg, as montanhas a leste do Werra. Prefiro o galo a qualquer nobre desconhecido. Somos cidadãos de Wasungen.

 

E da próxima vez, o plano é ir a Kaltennordheim. Conseguiríamos ir além de 1690? Penetrar na guerra dos 30 anos? E receber o livro de história de Wasungen, que o primo Georg ficou de mandar. E principalmente, terminar o livro. A história não tem fim. É como a natureza e seus segredos. Eu, por mais que sonhe com isso, jamais desvendarei o verdadeiro porquê da força dos meus ímãs. Mas é mais importante contar para os outros aquilo que já descobrimos, e quem quiser que conte outra.

Trem de Frankfurt a Manheim, 22:13 de 16.12.1990

 

Fernando J.G. Landgraf
 

Post scriptum: três meses depois de voltarmos ao Brasil recebemos uma carta vinda de Stuttgart. Uma sobrinha do Georg Landgraf da minha idade escreveu, Barbara Gottfried. Ficamos amigos por correspondência e, em 1994, estive visitando-a.

PS2: em maio de 2001 estivemos de volta em Wasungen, Cinézio e Cecília, Arnaldo e Lurdes e eu. Reencontramos Georg, sua irmã, seu irmão médico, uma festa. Consegui realizar o sonho de levar meu pai a Wasungen. Depois encontramos Barbara, seus pais e irmão em Stuttgart. Mais isso é uma outra história, que fica para uma outra vez.